Hoje, nos despedimos de Sissy Kelly Lopes de Souza, uma verdadeira guerreira e ícone da resistência LGBTQIAP+ no Brasil. Com 68 anos, Sissy partiu, deixando um legado inestimável de luta, coragem e, sobretudo, dignidade. Ela foi a primeira travesti a viver em uma Instituição de Longa Permanência para Idosos no país, abrindo caminho para que mais de nós tenhamos a chance de envelhecer com o respeito e o cuidado que merecemos.
Por Luciana Kimberly Dias - Do Mundo T em São Paulo
Sissy viveu intensamente e enfrentou batalhas que muitos sequer imaginam. Desde sua juventude, precisou enfrentar a violência e o preconceito em um Brasil marcado pela repressão da ditadura militar. Catorze irmãos, filha de uma família de pequenos agricultores, ela saiu de casa ainda jovem, sem entender completamente o que acontecia no país. Mas, quando fez 18 anos, partiu para Vitória, onde finalmente deu início à sua transição. A partir dali, começou a compreender as duras realidades e desafios que pessoas como nós enfrentamos, todos os dias.
Assista a Homenagem a Sissy Kelly:
Durante os anos de ditadura, Sissy não teve o luxo de recuar. Em várias cidades pequenas por onde passou, enfrentou a intolerância e até a deportação: era comum que as autoridades simplesmente “despejassem” travestis nas estradas, deixando-as à mercê da própria sorte. A Operação Tarântula, que visava travestis e prostitutas, foi mais uma das inúmeras ameaças que Sissy teve que contornar para sobreviver. Ela escapou da violência do Estado, da epidemia de AIDS e da hepatite C. Mesmo diante de tantas perdas e dores, sua voz nunca se calou.
Em 1986, ao contrair o vírus HIV, Sissy compreendeu que seu destino estava ligado à luta por direitos. Em 1991, após retornar da Europa, ela ingressou na Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e Aids (RNP) e passou a frequentar o Grupo de Apoio à Prevenção à Aids (GAPA). Lá, tornou-se uma ativista incansável, trabalhando como agente de saúde e cidadania em Belo Horizonte e levando a luta para o Distrito Federal e o Centro-Oeste, onde representou a RNP.
Envelhecer nunca foi fácil para nós, travestis e trans, e Sissy sabia disso. "A gente já nasce ativista", ela dizia. Com o passar dos anos, sentiu as dificuldades da solidão que permeia a velhice de nossa comunidade, uma solidão agravada pela falta de apoio e acolhimento. “Envelhecer é um privilégio”, dizia Sissy, e ela viveu esse privilégio com a força de quem sabia que ainda havia muito a fazer.
A ativista dedicou seus últimos anos a lutar para que pessoas LGBTQIAP+ idosas pudessem ter acesso a instituições de longa permanência e a casas de apoio. Sua história é um lembrete da necessidade urgente de centros de referência para que nossos idosos vivam com dignidade, para que suas histórias não sejam apagadas, para que possamos, um dia, olhar para o futuro e saber que temos um lugar de acolhimento.
Sua partida nos deixa com um vazio imenso, mas seu exemplo de resistência segue vivo entre nós. Sissy, que morou na Europa, viveu em ocupações e chegou a viver na rua tanto no Brasil quanto fora, nos mostrou que é possível resistir às adversidades e que nossa luta deve ser constante, pois somos mais fortes juntos.
O velório de Sissy acontecerá neste domingo (3/11), das 9h às 12h, no Memorial Zelo, na Avenida do Contorno, 8657, Bairro Gutierrez, em Belo Horizonte. O sepultamento será às 13h, no Cemitério Belo Vale, na Grande BH.
Querida Sissy, que seu descanso seja tão poderoso quanto sua luta. Que sua jornada inspire outras travestis e trans a seguirem em frente, sabendo que nosso lugar no mundo também precisa ser respeitado e protegido. Você será para sempre um exemplo e um motivo de orgulho para toda nossa comunidade. Obrigada por tudo que fez por nós. Descanse em paz.