Com axé, estilo e resistência: a moda trans tem nome e sobrenome Tereza Cabana
"Pode ter cara de homem, mas se apresentou como Sofia. No nosso ateliê será tratava como Sofia", diz Cris. Foto: Felipe Santiago/iG
Com a roupa certa que “dá axé”, travestis podem “cabanar” pelas ruas de São Paulo e do mundo. O verbo virou sinônimo de autoestima e afirmação no bajubá, graças ao sucesso da marca Tereza Cabana, precursora da moda trans no Brasil e cultuada por suas clientes há 23 anos. A ousadia das costureiras Terezinha Cabana, 70 anos, e sua filha Cris Cabana, 45, conquistou um público historicamente marginalizado e conhecido pelas estratégias para esconder quem se é. “Mulher encontra calcinha em qualquer lugar, travesti não”, lembra Cris, ao defender sua peça que promete aquendar a neca com dignidade e estilo.
De uma quitinete de 27m² para uma cobertura nos Jardins, mãe e filha construíram patrimônio costurando tubinhos, calcinhas e trikinis, clássicos no guarda-roupa de quem desafia o binarismo. Estampas de animal print e cores neon são as favoritas, e a calcinha de vinil segue como carro-chefe: resistente, funcional e acessível (R$ 30 a unidade, ou R$ 15 no atacado).
O nascimento da marca foi um encontro ancestral: a travesti Mônica, com apenas 17 anos e “um corpo escultural”, inspirou a primeira coleção. “Montei alguns vestidos e ela saiu pra trabalhar. Voltava contando o sucesso que fazia”, relembra Cris, emocionada. Em poucos dias, travestis faziam fila na porta do ateliê improvisado. “Nossa casa era muito pequena. Nunca imaginei que tivesse tantos travestis em São Paulo”, conta, entre risos.
O que começou com uma agulha e um sonho hoje é referência mundial de estilo, afeto e resistência. Porque moda também é ferramenta de afirmação trans.
Terezinha 'rebate' calcinha em sua nova máquina, apelidada de Ferrari. "Ainda estou pegando o jeito dela", disse. Foto: Carolina Garcia/iG São Paulo
Calcinhas são mais largas na parte da frente e tem costura reforçada. Cores neon e animal print são campeãs de venda. Foto: Divulgação
Entre as clientes fiéis da Tereza Cabana estão profissionais do sexo e mulheres transexuais, como Ariadna Arantes, conhecida nacionalmente após sua participação na 11ª edição do Big Brother Brasil. Ao iG, Ariadna contou ter conhecido a marca em Milão, um ano antes de sua cirurgia de redesignação em 2007. “Usar roupas da moda feminina comum era complicado pra uma menina como eu. Era um incômodo muito grande”, relembra. Sem opções e na urgência de esconder sua identidade, ela recorria às calcinhas de vinil, que muitas vezes chegavam a ferir sua pele, uma realidade cruel, mas comum a tantas de nós.
Arquivo pessoal
"Moda feminina comum era complicado para uma menina como eu", diz a ex-BBB Ariadna
“Muitas travestis ainda recorrem a super bonder, emplasto, até fita adesiva pra esconder a identidade real. A moda tradicional nunca pensou na gente”, dispara Ariadna, defendendo o impacto da Tereza Cabana, uma das poucas marcas que realmente nos entende desde a costura.
Com o público de São Paulo já consolidado, o próximo passo da marca é cravar bandeira na Europa. “Foi no boca a boca que a gente conquistou espaço lá fora. Imagina, sem internet, vendendo de porta em porta por 30 dias, durante 11 verões europeus seguidos”, relembra Cris com orgulho. Os destinos? Capitais como Paris, cidades da Itália, da Suíça. “E hospedagem nunca foi problema. Minhas clientes me recebem em tudo quanto é canto, pensões, casas, até puteiros. Numa dessas viagens, cheguei a vender 22 mil dólares em mercadoria. Foi quando percebi que o mundo precisava da nossa moda também.”
Em um ateliê espaçoso no coração dos Jardins, Cris e Terezinha seguem costurando história com linha e afeto. As duas dividem a rotina da confecção, onde mais de cem peças podem ganhar vida num único dia de trabalho intenso. O retorno financeiro, hoje, ultrapassa os R$ 15 mil mensais, um número que traduz a força de uma moda feita por e para travestis.
A mais nova integrante da equipe não tem CPF, mas já conquistou o coração das donas: uma máquina de costura potente, apelidada de “Ferrari”. “É a nossa queridinha agora. Ainda estou pegando o jeito dela”, diz Terezinha, com aquele sorriso que só quem costura com amor conhece.
Divulgação
Trikini é peça clássica no guarda-roupa travesti. Custa em média R$ 150 no ateliê dos Jardins
Preconceitos e axé
No vocabulário da nordestina Terezinha, criada em Fortaleza e forjada na labuta desde os 15 anos, a palavra preconceito não tem vez. “Sou das antigas, dura na queda. Mas nunca entendi essa coisa de discriminar. Quando a gente morre, o bichinho que come o branco, também come o preto”, solta, com aquele sotaque que ainda carrega do Ceará.
Mesmo com a mente aberta e o coração gigante, nem todos entenderam sua missão. O vai e vem de travestis em sua casa, que era, ao mesmo tempo, ateliê e abrigo, acabou virando alvo de processos judiciais. “Fui processada por vizinho que achava que travesti era sinônimo de tráfico. E eu só queria vender minhas roupinha”, recorda com um riso cansado, mas firme.
Com a leveza que a vida lhe ensinou, Terezinha ainda brinca com o nome da marca que virou sinônimo de axé. “As meninas dizem que dá sorte usar Tereza Cabana. E deve ser porque é tudo feito por uma virgem”, diz ela, apontando com os olhos pra filha. “Cris só pensa em costurar, minha filha. Acho que é virgem até hoje”.
Kimberly é uma Blogueira, Criadora de Conteúdos e Travesti, natural da cidade de Fernandópolis, interior de SP, Voluntária na militância pelos Direitos, Cidadania e Visibilidade Positiva das Travestis e Transexuais em Redes Sociais.
Kimberly é Blogueira, Criadora de Conteúdos e Travesti, natural da cidade de Fernandópolis, interior de SP, Voluntária na militância pelos Direitos, Cidadania e Visibilidade Positiva das Travestis e Transexuais em Redes Sociais. 📩 Contato: luciana.kimberly@yahoo.com