09 outubro, 2013

Leandra Leal dirige documentário sobre travestis na época áurea da Cinelândia

      Rony Maltz/Folhapress
No palco do teatro Rival, a atriz Leandra Leal posa deitada no colo de quatro das personagens do seu documentário "Divinas Divas": Camille K, Rogéria, Jane Di Castro e Eloína

O papo corre solto, naquela intimidade típica das longas amizades. "Sabe qual é o nome do filme da Camille?", indaga Rogéria. Ela mesma responde: "Deus Sabe o Quanto Amei!". Risos gerais diante da colega que, dizem, rivaliza com Elizabeth Taylor em número de casamentos.

As risadas dão o tom do encontro no camarim do teatro Rival, no centro do Rio. As quatro senhoras dispensam apresentações quando exibem suas identidades artísticas: Rogéria, 70, Camille K, 71, Jane Di Castro, 67, e Eloína, 67. Já no RG, elas são Astolfo, Carlos, Luiz e Edson, respectivamente.

As quatro estão ali para falar de "Divinas Divas", documentário que protagonizam ao lado de Marqueza, Waléria, Fujika de Halliday e Brigitte de Búzios. A história da geração de travestis da época áurea da Cinelândia deve chegar às telonas no ano que vem, pelo olhar da atriz Leandra Leal, 31, que estreia na direção de longa-metragem.

"Elas são artistas de verdade e representam uma escola que vem do teatro de revista", explica a diretora. No corre-corre do lançamento de quatro filmes em que atua, Leandra reuniu o grupo para o bate-papo com a repórter Eliane Trindade. Elas chegam impecáveis. Vestem-se de personagens que encarnam no palco e nas ruas desde o final dos anos 1960.

O elo entre a diretora e as transformistas é o teatro Rival. Foi ali que o avô de Leandra, Américo Leal, levou para a ribalta homens vestidos de mulheres. Em 1967, a trupe pioneira estreava o espetáculo "Pode Vir Quente que Eu Estou Fervendo", no mesmo palco onde brilhavam nomes como Luz Del Fuego, bailarina que se exibia seminua com uma cobra.

As aspirantes ao estrelato ainda desfilavam pela vida de "homenzinhos". Maquiadora da TV Rio, Rogéria já era vedete, mas se vestia de mulher só no palco. Jane trabalhava em banco. "Chegava ao teatro de terno."

A ousadia artística contrastava com o moralismo da época da ditadura. "Sair em trajes femininos era crime. Fui presa várias vezes", conta Jane. Além da polícia, encaravam "pit boys". "Juntávamos as piores bandidas e os bofes apanhavam horrores dos cem travestis da Lapa", recorda-se Rogéria, às gargalhadas.

Já no palco, faziam a linha lady. As musas eram Marilyn Monroe, Tônia Carrero e Martha Rocha, ícones da beleza feminina. As transformações no corpo só vieram quando as primeiras embarcaram para a Europa na década de 1970.

Brilhavam no Carrossel de Paris, templo do travestismo, e esculpiam o corpo com hormônios e silicone. "Voltei linda. Achavam que eu tava operada. Tinha de mostrar o peru para todo mundo", diz Rogéria. Até então adepta de peruca, lá fora descobriu que tinha madeixas poderosas. "Meu cabelo veio parar na cintura. Não tenho xoxota, mas a cabeleira ferve."

As histórias pipocam numa balbúrdia de amigas que passaram por poucas e boas juntas. "Somos uma família. Como em qualquer outra, na nossa também existe fofoca", diz Jane. "Fizeram intriga comigo e Rogéria, comigo e Eloína. Tivemos brigas, mas nunca nos afastamos."

Todas amam Camille. A figura magérrima contrasta com a exuberância das colegas. Famoso cabeleireiro da alta sociedade carioca, Carlinhos virou Camille K e passou a imitar a cantora Marlene e a se destacar em papéis cômicos. Foi dirigida no teatro por Miguel Falabella.

No espetáculo "Gay Fantasy" (1981), Eloína reuniu a turma sob a direção de Bibi Ferreira. Foi ela também que apresentou Camille ao atual marido, o webdesigner Fabrício Marotte, 30. As quatro décadas de diferença de idade parecem não pesar no relacionamento de sete anos. "Nosso cotidiano é uma fantasia real", define ele. Fabrício tem uma diva 24 horas por dia. "Nunca vi a Camille sem maquiagem nem de chinelo." Levou três anos para seduzi-la.

Jane achou seu "príncipe" na juventude. Está casada com o baiano Otávio Bonfim há 46 anos. A união civil só ocorreu há dois. Ele se encantou ao ver a morena à la Claudia Cardinale no palco. Mandou um bilhete e se encontrou com um engravatado. "Tava meio tubarão, meio sereia", brinca ela. Ele a incentivou a se transformar. "Tomei hormônio, operei o narizinho."

O empurrão final foi ver as amigas voltando de Paris poderosas. "Eloína era feia e ficou bonita. Rogéria tava um escândalo. Eu quis ficar uma miss." A metamorfose de Eloína foi tamanha que ela virou rainha de bateria em 1976, entronizada por Joãosinho Trinta. "Enganamos todo mundo." Dois carnavais depois, descobriram que ela era ele.

Quem também turbinou os seios foi Jane, mas ela se arrepende de ter colocado silicone líquido nas coxas. "Fomos cobaias. Caí na mão de um travesti assassino que me induziu a fazer aplicação na perna. Sofro até hoje."

Entre as quatro, apenas Jane cogitou fazer cirurgia de mudança de sexo. "Uma operada tentou fazer minha cabeça, mas não caí nessa." Também driblaram a prostituição. Rogéria conta uma experiência em Paris. "As meninas diziam: 'Vai fazer [pegar] um cliente'. Saí com um cara e foi uma coisa horrorosa. Ele botou a mão na frente, lá. Não rolou", recorda-se. "Mas, de graça, peguei todos os lindos franceses."

Jane relata ter feito michê para não passar fome em Paris. "Mas não é nossa praia." Rogéria pondera: "Tem muito travesti que se prostitui e são ótimos artistas".

Essa trajetória será recontada em depoimentos e imagens no documentário, cujo "gran finale" será as filmagens do espetáculo "Divinas Divas", que estreou em 2004. Em 13 de dezembro, as oito subirão ao palco do Rival para encenar a própria história em uma superprodução.

O projeto ganhou edital de R$ 200 mil da Prefeitura do Rio. Para fechar o orçamento, vão lançar um crowdfunding -ferramenta de financiamento pela internet- para tentar levantar R$ 150 mil. As cotas da "vaquinha virtual" começam em R$ 20 e chegam a R$ 10 mil. "A partir de R$ 100, a pessoa pode ver o show e fazer figuração no filme", diz a produtora Carolina Benjamin.

O documentário coroa a carreira de um grupo que, com altos e baixos, nunca deixou os palcos e conquistou outros espaços. "Jamais imaginei chegar aos 70 anos sendo Rogéria", diz a própria. Ela é prova de que ator não tem sexo. Fez o papel de uma avó na novela "Lado a Lado", da Globo. "Somos os travestis da família brasileira."

Além de síndica do prédio onde mora em Copacabana, Jane se orgulha de ser fundadora da Parada Gay. No primeiro desfile no Rio, ela cantou o Hino Nacional para barrar a ação violenta dos opositores. "Todo homofóbico tem problema. Não deu certo no sexo nem com homem nem com mulher. Quando nos veem pensam: 'Aquilo sou eu'. Tanto ódio é por não assumir a homossexualidade."

Elas vieram ao mundo para confundir. "Fui fazer exame de próstata e, na hora de entrar na sala, a atendente perguntou cadê meu marido", conta Camille, provocando explosão de risos. "Os gays fazem da tristeza alegria. Somos iluminados." E elas não veem a hora de as luzes se acenderem para a cena final de "Divinas Divas". "Vamos morrer em cima do palco", diz a síndica Jane. Haja estreias e tapete vermelho.

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