Repórter aceita o desafio de andar montado pela Avenida Paulista



Repórter se monta para sentir na pele a transfobia em plena Avenida Paulista 

Postado por: Nelson Neto
Revista Junior

Dentro do banheiro da loja de maquiagem Adóoogo Make Up, do Dicesar, o Nelson Neto transcendia para outra esfera da realidade enquanto tirava a calça, a camiseta, a camisa e a boina. Naquela tarde, olhei pela última vez no espelho e me vi como Nelson. Coloquei a meia-calça, o vestido vermelho bordeaux e preto e fui em direção ao Dicesar, que me esperava com toda a sua linha de produtos para me transformar em uma mulher. Elogios de quem entrava na loja não faltavam para o trabalho impecável do artista que dava vida ao meu lado feminino. Até que depois de cerca de 45 minutos a cadeira se levanta. Olho para o espelho e não me reconheço, vejo apenas: “Ana Clara! Acho legal um nome feminino”, diz Dicesar, me batizando. Toda minha confiança e dignidade estavam em cima de um salto quinze e vestido curto.

Sem tropeços, mas com as pernas bambas de ansiedade e medo, caminhei pela calçada do Largo do Arouche, no centro de São Paulo, em direção à Rua Vieira de Carvalho, apertei a campainha do prédio onde está a redação da Junior e o porteiro pergunta: “quem é você?”. Para não ter que dar tantas explicações preferi já começar a rir e dizer que sou o repórter do conjunto 21. A boca aberta dos porteiros não pôde ser evitada. Deixei meus pertences – melhor, deixei o Nelson na redação – e desci o elevador. Meu destino? Avenida Paulista. O primeiro impacto foi no metrô República, logo ao entrar no vagão da linha amarela, outra amig(a) já me encarou e começou a dar piti, ainda bem que ela logo saiu!

Depois da primeira reprovação por uma “amiga” da mesma categoria, enquanto ainda estava dentro do metrô em movimento, via meu reflexo no vidro, minha pele mostrava uma mulher. Na linha verde, aquela voz virtual anunciava a estação Trianon-MASP, os olhares das pessoas contra uma travesti são como flechadas que matam a alma pouco a pouco. Crianças, mulheres, héteros e homossexuais te miram como se você fosse uma caça. Mas também não ficam de fora aqueles rapazes que flertam dos pés à cabeça e dão aquela piscadinha.

Depois de duas quadras, o salto quinze já começa a fazer efeito, a dor de caminhar nas calçadas de São Paulo com um sapato deste só não é maior do que o preconceito que sofri. De tantos olhares até cheguei a pensar que o problema não era eu estar travestido, mas sim algo realmente errado comigo, talvez o modo de andar, talvez eu pudesse ter borrado a maquiagem. Até que no reflexo de um edifício vi uma mulher alta, elegante, de cabelos negros, longos, maquiada para o dia e para um drinque no início da noite em um elegante bar da cidade. Parei para olhar aquela mulher e tentar imaginar qual seria a sua vida, qual seu trabalho, onde ela poderia morar, quais seriam seus amigos… mas não conseguia encontrar uma história feliz com todos me reprovando. Resolvi tomar meu caminho rumo ao prédio da Livraria Cultura do Conjunto Nacional.

Atravesso a Avenida Paulista e uma criança olha pra mim, me aponta e: “olha! Mãe! Olha! Um homem vestido de mulher”. A mãe olha de canto, como se não estivesse ouvindo a filha, verifica o que é que a menina tanto aponta, faz de conta que não me vê, pega na mão da filha e atravessa a rua, sem explicar à criança o que era “aquilo” de estranho que ela estava apontando. Continuo andando como se eu fosse uma mulher qualquer, por qual motivo não seria? Eu poderia ser alguma das amigas que caminham em grupo pela calçada. Eu poderia ser a mulher que corre enquanto fala ao telefone e segura a bolsa com uma mão só e equilibra pastas com documentos. Eu poderia ser a outra mulher que caminha lentamente vendo a vitrine de roupas e sapatos na Rua Padre João Manuel com a Avenida Paulista enquanto é atendida por uma vendedora.

Resolvi dar uma olhada em alguns sapatos e vestidos, parei na frente de uma vitrine e rapidamente a atendente sai do fundo da loja sorridente para atender mais uma cliente, a única coisa que nos separava era a vitrine e quando ela observa sob os ombros dos manequins que a moça está presa em um copo masculino imediatamente retorna e faz uma ligação no caixa. Em instantes chega um segurança e pergunta para vendedora: “está tudo bem por aqui?”, ela simplesmente olha em minha direção e o rapaz diz: “você não pode ficar aqui”. Eu quis questionar o motivo pelo qual eu não poderia estar naquele estabelecimento, pensei “você não tem meu número de sapato? Não tem o tamanho de vestido que me caiba? Ou vocês não vendem para uma travesti?”. A pauta não era ir até às ultimas consequências como chamar a polícia, então simplesmente pedi desculpas e saí da loja sem sapatos, sem roupa e sem ser respeitada.

Meia-calça e cueca 

Entrei na Livraria Cultura. Nenhum olhar. O que aqueles funcionários e clientes que estão dentro da livraria têm de diferente de quem está fora dele? Me questionei e no meio deste questionamento a bexiga apertou e deu vontade de ir ao banheiro. Parei no meio do corredor. Do meu lado direito um símbolo indicando o sanitário feminino, do meu lado esquerdo o masculino e em minha cabeça um ponto de interrogação. Em qual ir? Como entrar? Serei rejeitado em qual? As mulheres ficarão incomodadas? Se for ao masculino, os homens irão me reprovar? E nesse devaneio em qual porta entrar a natureza gritava dentro de mim e entrei no masculino. Ninguém. Banheiro vazio!

Abaixa meia-calça, desce cueca e levanta saia. Depois do sofrido ritual era só esperar o líquido sair. Barulho de cachoeirinha na cabine e começo a ouvir vozes entrando no banheiro e resolvo sair. Todos os homens que utilizavam o mictório me olham assustados. Um senhor que esperava eu sair da cabine se depara com uma mulher de 1,93 de altura, ele me olha e diz: “desculpe moça, acho que entrei no banheiro errado”. Eu olho para ele e falo, “tranquilo vô, sou menino”. Sigo para o espelho, tinha homem que já tinha feito que deveria ter feito no mictório e ainda assim como uma coruja que torce o pescoço quase 360 graus, me observava arrumando o cabelo no espelho.

Saí da livraria e novamente eu parecia um peixe fora d’água, eu não me encaixava naquele lugar. Resolvi voltar para a redação. Peguei o metrô lotado, horário do rush, todos evitavam tocar em mim, o que é impossível às cinco da tarde em qualquer transporte público de São Paulo. Cheguei à República, o habitat natural de todas as meninas que já foram meninos um dia. Até elas me encaravam como “carne nova no pedaço”, mas nem liguei, continuei meu caminho até que no semáforo da Rua Vieira de Carvalho, um carro para e uma trans coloca a cabeça para o lado de fora da janela do automóvel e grita para os sete ventos em minha direção: “arrasou querida!”.

Depois que Ana partiu...

O alvoroço era grande na redação, eram sorrisos e fotos para todos os lados. O André Fischer publicou uma foto no Facebook onde apareço com meus colegas de trabalho e em poucos minutos dezenas de curtidas e alguns comentários. No fim do dia, eu tinha uma chuva de inbox de amigos elogiando minha decisão de virar trans. Nem chegaram a me perguntar o motivo pelo qual eu estava assim.

No fim de semana precisei conversar sobre assuntos profissionais com algumas pessoas, a maior parte me evitou. O que achei bastante constrangedor. E cerca de 15 pessoas me deletaram de seus contatos. O que me fez refletir: se eu tivesse feito uma reportagem onde me transformasse em um mendigo e passasse o dia na rua pedindo dinheiro, provavelmente a comoção seria mais positiva, mas como me travesti, as pessoas de meu círculo preferiam me julgar. Até que ponto as comunidades hétero e homossexual estão preparadas para enfrentar seus tabus? - 

Postado por: Nelson Neto:
http://revistajunior.virgula.uol.com.br/junior/extra/reporter-aceita-o-desafio-de-andar-montado-pela-avenida-paulista.html#sthash.tS2I0Vmh.dpuf
Comentários
3 Comentários

3 comentários:

  1. tem que ler? achei que era video.

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  2. A matéria é antiga, mas cara, achei super bacana... valeu Nelson Neto.. Minha filha é transexual, todo dia ela sofre isso na pele... eu junto com ela..

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