Rio de Janeiro prepara Travestis/Transexuais para o mercado de trabalho



RIO - Depois de três anos vivendo de trabalhos informais, como ficar horas em pé, debaixo de sol ou chuva, nos canteiros das ruas da Barra e do Recreio, segurando cartazes de lançamentos imobiliários da região, Carol Trajano não pensou duas vezes quando soube por um amigo que havia uma vaga de operadora de loja na Casa & Vídeo. Mandou o currículo e, no dia da entrevista, apareceu, como convém nesses casos, vestida e maquiada discretamente, com os longos cabelos louros presos. Aprovada pelo gerente, Carol hoje tem carteira assinada, fica na caixa e repõe mercadorias. Num país em que a taxa de desemprego não chega a 5,5%, o final feliz seria ordinariamente comum para qualquer jovem de 22 anos — mas não para ela. Carol não nasceu Carol.
— Para uma travesti, conseguir emprego é igual a ganhar na Mega-Sena. É muito difícil — assegura.
Carol faz parte de uma força de trabalho numerosa e invisível, que não consta do Censo nem faz parte de qualquer estatística— a de travestis e transexuais. Ignoradas, as centenas de cariocas, talvez até alguns poucos milhares, que nasceram homens, mas hoje têm aparência e identidade — não a do RG, mas a subjetiva — femininas, enfrentam a rejeição do mercado de trabalho. Por mais qualificadas que sejam, por mais esforço que demonstrem e diplomas que exibam, as portas se fecham com estrondo. Para tentar mudar esse quadro, a Coordenadoria Especial de Diversidade Sexual do Rio tem apostado no projeto Damas, que, junto com secretarias municipais, procura fazer a inclusão social e profissional de travestis e transexuais, como noticiou Ancelmo Gois em sua coluna no GLOBO.

As alunas têm, por cinco meses, aulas variadas, que vão de reforço escolar a palestras sobre hormônios e direitos civis. A teoria e a prática se alternam durante o curso: as alunas também aprendem como dar entrada no processo para mudar de nome na Justiça, procedimento que pode levar três anos. Atualmente, na Defensoria Pública, 35 pessoas aguardam sentença, e apenas cinco conseguiram efetuar a troca. As alunas são orientadas ainda sobre como fazer um currículo trans — o nome social deve sempre aparecer na frente, entre parênteses. Juntando experiências diferentes, travestis e transexuais que se prostituem com os que são sustentados pelos pais ou vivem de bicos, o Damas tem feito sucesso. Já atendeu cerca de 50 pessoas, deixou gente de fora por falta de vagas, mas as inscrições para uma nova turma de 20 alunas já estão abertas, pelo telefone 2976-9137.
— A ideia era atender apenas quem vivia da prostituição, mas nos surpreendemos com meninas que tinham formação em direito, psicologia pela PUC... Há pessoas qualificadas, mas uma dificuldade enorme dos empregadores. O projeto não tem como garantir emprego a ninguém, mas esperamos sensibilizar as empresas — diz Carlos Tufvesson, coordenador especial de Diversidade Sexual.
Empresas ainda resistema contratar
Há pouco mais de um mês na Casa & Vídeo, Carol, que passou pelo Damas, sabe que seu caso é uma exceção:
— Pela primeira vez, posso trabalhar como sou. Uso o cabelo longo, passo sombra nos olhos. Trabalhei em lanchonete com meu nome de registro, masculino, no crachá. Os gerentes me mandavam cortar o cabelo, fingir que era homem. Agora, um cliente ou outro me olha torto, faz piada, mas eu sou muito bem tratada pela empresa.
A supervisora do Damas, Beatriz Cordeiro, ainda conta nos dedos das mãos quantas alunas conseguiram emprego.
— A história é sempre igual. As meninas participam de processos seletivos, fazem entrevista, treinamento. Mas, quando entregam os documentos para ser efetivadas e as empresas veem que o nome é masculino, é aquele choque. Os recrutadores dizem que foi um engano, que a vaga já havia sido preenchida — diz Beatriz, ela mesma uma transexual que já viveu na pele a experiência da rejeição diversas vezes. — Procurava empregos administrativos, sem contato com o público, mas nem assim conseguia. O empresariado é resistente.
Lara Lincoln foi uma das que conseguiram emprego através do Damas. Ela foi contratada como recepcionista pelo salão HBD Spa, em Ipanema. As clientes, diz, a aceitam. Já as senhoras da limpeza...
 Algumas me chamavam de “ele”. Mas, com jeitinho, resolvi isso.
Para o pesquisador Guilherme Almeida, do Laboratório Integrado de Diversidade Sexual e de Gênero, Políticas e Direitos da Uerj, a situação só vai melhorar quando a mudança de nome (que, no Brasil, só é feita judicialmente) for menos burocrática:
— Na Argentina e em Portugal, basta procurar o cartório com laudo médico. Quando o empregador vir o nome feminino diante da figura feminina, terá mais facilidade para contratar.
Consultorias de RH evitam o tema
Não é difícil perceber que o assunto é tratado com muita reserva. Repórteres do GLOBO procuraram três consultorias de RH para que elas falassem sobre as dificuldades de contratação de travestis e transexuais. Duas disseram não ser possível marcar entrevistas, mesmo com mais de 48 horas de antecedência. Uma delas foi mais sincera: ninguém da empresa ia falar, porque o assunto era muito “espinhoso”.
Nesse universo que mistura preconceito e desinformação, muitos travestis e transexuais acabam no mercado do sexo. E quem disse que é fácil sair dele? Juliana Silva, de 31 anos, não esconde de ninguém que já vendeu o corpo na Zona Oeste, onde nasceu, e depois na Espanha e na Itália. Três anos de Europa bastaram para ela voltar com um pé de meia, investido num curso de técnica de enfermagem. Formada desde 2010, Juliana é a única da turma de 30 alunos que nunca conseguiu emprego.
 Fiz inscrição em clínica particular, empresa de home care, mas ninguém me chama. Todos acham que o lugar da travesti e da transexual é só a prostituição. Ninguém dá chance. Você almoça fora todo dia? Tem alguma travesti no restaurante que você frequenta? Você conhece alguma jornalista transexual? —pergunta.
A dificuldade também foi sentida por Tatiana Crispim. Formada em direito, ela não conseguia vaga nem como atendente de telemarketing. Hoje, trabalha como assessora jurídica num escritório de advocacia, onde os cinco advogados sabem que ela é transexual. Ninguém mais:
— O transexual está no topo da pirâmide do preconceito. Como será a reação das pessoas aqui do prédio? Dos outros advogados que vêm aqui? Para todos, eu sou a doutora Tatiana, e pronto. E agora? — preocupa-se, escaldada pelos relacionamentos amorosos. — Quando eu conheço um cara, nunca passo da página 20. Para ir para a 21, tenho que contar quem eu sou. E aí a reação é sempre a mesma. Todos vão embora.
Bacharel, ela pretende fazer novamente a prova da Ordem dos Advogados do Brasil, na qual foi reprovada ano passado. A prova de fogo no emprego ela já venceu.
— Ela é ótima, muito competente — diz Sérgio Camargo, empregador de Tatiana.
Comentários
3 Comentários

3 comentários:

  1. OI...pecisamos montar empresa de treinamento e colocação para o mercado GLBT! ...quem tem a empresa e é do meio deveria promover vagas e montar uma rede de colocação! ...basta toda a comunidade GLBT nacional fazer a sua parte que há trabalho digno para todos!!! ...precisamos pensar numa só razão!!!

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    1. Muito Boa Ideia Hannah essa iniciativa já está em papel ?

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